segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Busca do eterno vazio


A chuva de papel picado derreteu. O vento fazia pairar uma nuvem de confetes usados. A dor lhe enjoava. A vida seguia molhada. Tudo escorre: dor, amor, ilusão. Os movimentos é que salvam do torpor. Os corações, que seguram nas mãozinhas pequenas, passam. Isso fazia ela se sentir tão pequena. Queria mesmo era se enfiar embaixo do buraco da porta. Conseguir ficar ali, esticadinha, bem retinha. A porta ia passar por cima e voltar sem que nem sentisse. As alegrias bobas iam se desfazendo. Os encontros passageiros. O tempo de matar o coração. Por quê? Por que um sábado a noite podia lhe matar tanto tempo? Queria se pintar de vermelho. Passar a tolha. Tudo ia ficar lisinho. Como se existisse uma borracha que apagasse as histórias da caixinha colorida. Essa caixa precisa ser incendiada. A música estava lhe sufocando. Seu tesão derretia junto com a chuva... esvaía-se. Resta um nome vazio. Nem se achava mais digna dele. Matar Nietzsche, não só Deus. Quem sabe? Queria que os confetes já borrados se enfileirassem, formassem letras, lhe escrevessem a verdade. Mas as sensações continuam a lhe envenenar em busca de seu eterno vazio.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Madrepérola


Imagem: Water lilies - Claude Monet
Fora encontrada na beira do mar. Não tinha as cores mais bonitas. Alguém acreditou que de dentro daquilo algo bom poderia se dar. Estava em estágio pré-lapidação. Como era escura! Escondia os mistérios de olhos já vividos. Quebravam, batiam, cortavam. Aos poucos, devagar, a violência escondida no brilho ia aparecendo. Estranho. O rosa, o verde, o indizível: iam se misturando em filetes fininhos. Não era brilhante, mas mostrava cores deliciosas. E quantas eram, quantos tons, quanta paixão. Devagar a danada ia se mostrando bonita. Se no começo ninguém lhe queria, agora já queriam saber a hora de a levar para a cidade. Quem a desvendasse, poderia tê-la. Gostava de sentir as ondas baterem fortes em seu pequeno tamanho. Acostumara-se com o vai e vem das águas. Desde pequenininha fora assim. Não tinha como lhe roubarem a crueldade de ter sido gerada na dor. Um dia a levaram para loja. Um pescoço curioso quis experimentar. Mas logo se chateou. Queria seu dinheiro de volta. Malditos! Ninguém lhe avisou que dentro daquela pedrinha colorida escondia-se um perfume extravagante. Quem iria saber? Até ela, por vezes, se convencia de sua doçura. Mas essa vida de pedra...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Maria era Maria de "sonhar"


Maria Vai com as Outras (Vinicius de Moraes)

Maria era uma boa moça
Prá turma lá do Gantois
Era Maria vai com as outras
Maria de cozer, Maria de casar


Porém o que niguém sabia
É que tinha um particular
Além de cozer, além de rezar
Também era Maria de pecar

Tumba é caboclo
Tumba lá e cá
Tumba é guerreiro
Tumba lá e cá
Tumba é meu pai
Tumba lá e cá
Não me deixe só

Maria que não foi com as outras
Maria que não foi pro mar
No dia dois de fevereiro
Maria não bincou na festa de Iemanjá

Não foi jogar água de cheiro
Nem flores pra sua Orixá
A Iemanjá pegou e levou
O moço de Maria para o mar

Até hoje ainda se fala
das rodas lá do Gantois
Que triste era de ver Maria
na sala onde ela ia
pra se manisfestar

A gente ainda se admira
seu gira-gira sem parar
Maria girou!
Deixaram girar
E a turma não parava de cantar:

Tumba é caboclo
Tumba lá e cá
Tumba é guerreiro
Tumba lá e cá
Tumba é meu pai
Tumba lá e cá
Não me deixe só

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O tempo




Os anos tinham comido a história daqueles olhos. O cachorro não latia mais. A mãe não preparava o café. O vô não tocava gaita. As horas sussurravam mau agouro. Cruzava a esquina ainda desejando as luzes, mas só encontrava pó. Não sentia mais o desespero. Era como se algo lá dentro tivesse quebrado. Primeiro os cacos lhe inflingiram em dor. Agora para não vomitá-los andava muito devagar. Isso lhe aliviava a dor, mas lhe impedia de dançar. Digeria a fúria adolescente. Era o tempo a lhe devorar. Tudo ia ficando amarelado como foto antiga. Alegria, desejo, saudade. Por que é que inventaram o círculo, o relógio, a bússola? Se antes pensava que não era linear, agora ia mais longe. Também não conseguia se fechar em forma nenhuma. Nesse caos sem forma eram as cores que queriam falar. Saiam da sua boca como os lenços saem da garganta do mágico. Seu querer não tinha mais tantos lados. O caminho era sem volta. Mergulhar nesse caldo colorido lhe doía, lhe fazia gritar, espernear, sumir... Viajava inconscientemente dentro do seu faz-de-conta. Continuaria por caminhos ainda incertos. Com certeza menos vermelhos, mas o traçado caberia dentro de seu caderno.