quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A prisão dos dias de sol


Os dias bonitos são uma prisão para as almas livres que devem se submeter a cansativa e irritante rotina do trabalho. A luz do sol misturada com a névoa azul do céu nos primeiros minutos da manhã penetram a atmosfera prometendo calor. Animam a pular da cama cedo. Dez horas o frescor do dia é substituído pelo sol quente. A cama já está vazia e arrumada. As flores lá fora parecem mais coloridas e sorridentes. O peito se acalma. Mas como passe de mágica começa o corpo a sentir os melindres desastrosos da prisão. A contemporaneidade nos aprisiona no mundo da informação. Não há tempo para deixar o sol penetrar lentamente na pele e os olhos fantasiarem com as cores ao retornar para dentro de casa. Não há grama, nem jardim. O mar está ali, mas não há água. O acinzentado das ruas, das águas, dos dias poluem o dia ensolarado. O vento faz as suaves asinhas das margaridas na garrafinha de coca-cola voarem. Minha lembrança voa junto com as pétalas para as tardes mais felizes de verão. Aqueles dias no sítio. Desenhados com as cores mais fortes e as sensações da água deslizando sob a pele, a garganta, os olhos e até, certas vezes, infelizmente, pelos ouvidos. Eram vivos os gritos contornados pela água da piscina que saiam da boca das crianças. Dez, quinze pequenos serezinhos que não imaginavam um dia encontrar o cinza. Era o barro, a água, a grama, as frutas que preenchiam cada pequena existência. Escurecia, mas o calor... ali, sempre ali. Aquecendo com ternura as noites cansadas. Depois de cai, levanta, briga, brinca, era hora de sonhar com o outro dia. O que esperar hoje para amanhã?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Despedida

O cheiro da casa dando tchau misturava-se com o cheiro da vontade da vertigem. Só ele! Para ser bege, cinza, vermelho e rosa num só.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Na ponta dos pés os cronópios


Imagem: "Os amantes" René Magritte


De repente o mundo se tornou tão generoso que as palavras pareciam desnecessárias. Aprendera a escrever só sobre o caos. Sobre as vísceras que se estrangulam na angústia da dor. Não é mais possível fazê-las sofrer. Nem que ela aperte o peito e tente vomitar algum temor. Ainda tenta buscar dentro do corpo aquilo que lhe angustiava. Aquilo de que tanto escreveu na busca de um nome. É como se o vento tivesse soprado de dentro do seu corpo todo o amarelo. A náusea ininterrupta da vida por hora estanca. A reação é um suspiro leve e alegre. Ahhh... se fosse possível suspender o tempo no momento da inspiração daquele perfume! Se resta alguma coisa a dizer é sobre o peso da rotina. Ela faz questão de sempre lembrar que os ponteiros correm. Nessas horas, voam! Gritam desesperadamente para alertar que o tempo sempre chega já dobrando a esquina. Precisa correr para não deixar escapar o instante. A vida da pressa. Essa é que faz lembrar que logo a angústia pode roubar a cena e voltar a ser de novo personagem principal. Por enquanto, se deleita usufruindo de toda cronopicidade com que foi abençoada ao nascer. Fica na ponta dos pés para alcançar outro cronópio e, então, brincarem de esquecer a razão.

domingo, 20 de setembro de 2009

É dia de sol!


Brincava de correr. Tirou do bolso o brinquedo novo. Água, sabão e um assopro. Devagar a espuma foi se condensando. De repente todas as cores bem esticadas apareciam no limite de tensão. Ela queria se desprender das margens. As gotinhas usaram toda sua energia. Esticaram até o último milímetro dos pezinhos. Foi nascendo bem pequenininha. Mas era tão frágil que ao deslizar pelo corredor, bateu no telefone e voltou a estaca zero. Estaca zero de bolha é negativa. Nos dias seguintes permaneceu calada no bolso da jardineira da menina. Um mar de conversas joanísticas e coloridas fizeram com que o brinquedo saísse de dentro do bolso outra vez. Era um dia de sol e a bolhinha começou de novo a surgir. Leve e doce. O verde era a cor que se destacava quando refletia no sol. Assim uma bolhinha com cara de velha, mas força de nova, deslizou no ar. Voou alto e continua sobrevivendo na vontade da menina de sentir o movimento suave, encantador e divertido da bolha no ar. É dia de sol!

sábado, 5 de setembro de 2009

Mais do mesmo


Sem vontade de mais uma vez viajar no mais íntimo de mim. Para que sofrer mais uma vez com a repetição da vida? Tem metáforas bem melhores que as minhas para isso. Cansei de reinventar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Os binômios da vida

às vezes dói, às vezes é divertido...
tem hora que amo muito, nas outras quero amar muito...
às vezes sou alegre, mas na maior parte do tempo só eufórica...
a felicidade mesmo só dura uns instantezinhos, nos outros resta a saudade da felicidade...
por isso, às vezes,continuo...

sábado, 1 de agosto de 2009

Confusão de paixão



Imagem: Bansky
O primeiro pensamento da manhã e da noite não tinham mais donos. Acordava e dormia sem ter para quem dizer bom dia e boa noite. Cativara tanto o desejo de que haveria algo para sempre nesses sentimentos. Mas esquece que uma palavra trocada pode desfazer o encanto. O príncipe se transforma em sapo. E o tempo de beijar sapo já bateu as botas. O primeiro amor então se perde no olhar do tanque sujo de escamas de peixes. Sempre aparece outro e, quem sabe, um menos platônico. O instante em que o coração deixa de querer se rasgar por aquele olhar que antes queimava é imprevisível. Ela não quer deixar suas cartas sem ter um nome para enderaçar. No entanto, o desejo é muito maior que o destinatário. A vontade é de sentir tudo de novo como se fosse da primeira vez, como se a vida se enchesse de cor. Mas se cansou de desejar tudo de bom para suas perturbações. Seu sonho agora é dizer durma em paz.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Caminho B


De repente o ambiente sóbrio encheu-se com um olhar atrevido. As risadas seduziam sem que fosse preciso trocar uma palavra. Aos avisos recebidos levantou os ombros. Simplesmente continuou. Uma leve arrogância lhe fazia acreditar que as coisas sempre podem ser diferentes. O elevador, o táxi cheio, a farmácia. A cadeira que quis trazer para mesa. Erro. Tudo começava a falar não. Do outro lado uma história sonhada irrealizável. O banheiro, o beijo e toda irresponsabilidade do mundo. Acostumara-se tanto em viver coisas passageiras. Dessa vez parecia que o mar daquele lugar escandalosamente deslumbrante estava lhe dando um presente. Esquecera que o presente pode ser de grego. Como bomba relógio, a qualquer hora, o cavalo poderia se abrir. Como um catalizador ajudou que um lado ficasse mais próximo daquele olhar. Incendiou o que até aquele momento não passava de pensamentos. Tornou o impossível realidade. Mas não para si. Se gostava de olhares atrevidos, quem sabe o seu também fosse. E assim de rio em rio é que acabou por se afogar. Sem restar nem um amigo. Com a imagem de que depois de catalizar, seu corpo agora necrosa. A dança da vida no encontro do inesperado acaba sempre a repetir os movimentos mais conhecidos. Esquece de tentar se surpreender. Mas finalmente chegara a hora de voltar e escolher o caminho B.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Amizade

Em cada tombo, riso e choro seguram como um cordão. Em um equilíbrio desarmonioso brincam como joão bobo para que a corda esteja sempre esticada. Tão presentes, tão amáveis e tão silenciados. Protagonistas desfarçados de figurantes. Vigiam a noite e não tem pretensão de ser estrela. Sabem como ninguém ocupar o lugar sem ilusões com promessas de poder. Ouvidos afiados, línguas soltas e abraços ternos. Não seria possível suportar o mundo sem essa cadeia de olhos espalhados pelo país. Os dias de mais riso são sempre com eles. Os de mais lágrimas por eles suportados. Toda gratidão seria pequena. Existem, vivem e sentem com pouco esforço a leveza e todo peso da existência de todo santo dia.

Amor de queris



Imagem: Magic Garden - Paul Klee

ao meu amigo Vinicius.


Queri já fez 30 e não achou sua rima. Queri ama tanto que até as orquídeas nascem na janela no primeiro do ano. Queri acorda depois de desligar onze vezes o despertador. Sai de casa com o ponteiro já quebrando. Confere se a carteira está no bolso, ajeita o óculos no rosto, fecha o portão baixinho e segura minha mão. Subimos devagarzinho a rua do bairro até chegar o ponto de ônibus. Com cara de menino santo, mas espírito malandro, disfarçadamente, escorrega sua mão dentro da minha roupa. Como se estivesse dentro de quatro paredes. Dou um beliscão em queri e junto um sorriso molinho. Procuro seu rosto fresquinho para amá-lo com um beijo no rosto. A barba pinica. Um ônibus para o centro, um metrô para a Paulista. Queri continua atrasado. Lá vão os olhos perguntadores cheios de segredos. Eu que me achava tão sabida de queri, já não sei mais. Não sei mais se ri de gosto de viver ou porque se acostumou a ser assim. É o último a chegar ao trabalho, mas nada passa despercebido aos seus olhos. Se eu pudesse escolher, casava com queri. Mas eu nasci com gosto estragado. Queri não é moço de casar. Como gosto de gente sem paradeiro, de gente que ama a vida mesmo dando vontade de desistir. Nessa roda-gigante, hora sofro eu, hora sofre queri. Triste é sofrer por queri. Justo eu que faço tudo tão parecido com queri, como não consigo entender? Queri agora tem 30 e não quer saber de namoro de asa quebrada. Mas como viajar 700 quilômetros com a asa machucada? Esse amor de queris precisa de outra cor. Cor sem dor, cor de novo amor. Vê se aprende dessa vez, hein, queri?

quinta-feira, 11 de junho de 2009

204

À minha mais solitária vizinha do nome esquecido e da face embaçada pela memória, do choro abafado pelo barulho dos pratos, da voz encoberta pela sombra daqueles que não enxergam a porta da frente, das cartas engasgadas na caixa do correio, do dicionário de inglês que nada podia falar das palavras que, quem sabe, contassem sua angústia, dos vizinhos tão ensimesmados em suas mediocridades, sinto dizer que o dia amanheceu tão cinza quanto aquele em que você se foi. Apesar de as rosas estarem floridas no jardim, não há vida do lado de fora do vidro. Continuo por um impulso inicial que ainda não chegou ao fim. Às vezes quase o ciclo estaciona, mas aí bate um vento, cora meu rosto, e, faz meu corpo reverberar no movimento da vida. Confesso não compreender o sentido dessa nossa existência tão solitária e sinto como se minhas cordas vocais, veias, peito e alma se rasgassem. Ainda pior é saber que não lhe levarei nenhuma flor, não lhe dei nenhum sorriso nem lhe emprestei uma caixa de fósforos. Se seu sofrimento tiver chegado ao fim, fico aliviada e respiro melhor por alguns segundos. Como se soltassem o cinto opressor que insiste em se costurar na altura do meu pescoço. Se pudesse lhe oferecer algo, gostaria de lhe dar a sensação de um passeio a beira mar em um dia de céu azul e vento gelado. O sol no meio da paisagem aquece o corpo, nos cega para a realidade e nos faz delirar com cores jamais vistas e que certamente não existirão.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Transtorno

Pina Bausch (foto)

Mesmo que o furacão pare, que o vento cesse, que os dias passem mais devagar, que a chuva dê trégua... já ficou claro... o sol se abriu, secou o chão, abriu sorrisos para desaguar mais uma vez em tempestade... a noite não irá arder, o tempo não se fará presente e o livro ficará, por muito tempo, sem as últimas palavras.

domingo, 24 de maio de 2009

Sincronia: linha invisível


Os braços esticaram. Sem precisar tocar as mãos. Como se um fio invisível ligasse os dois corpos. Naturalmente deslizava um no outro. Pareciam ter dançado a vida toda juntos mesmo sem nunca terem se tocado. O olhar fazia um coração dançar. A dança colocava o outro em movimento. Juntos sentiam-se flutuando horizontalmente em pedacinhos de papel brilhante. As idéias também se tocavam. Pareciam ter sido pares desde o nascimento. Entendiam-se na inércia e na vontade de passear devagarinho pelo mundo sem fim da imaginação. Um pensamento conectava-se com o do outro em movimentos cada vez mais ousados. Mas sempre, a pedra no meio do caminho... E o caminho iniciara-se antes de os braços se alongarem. A sincronia interrompia-se por tropeços. De repente os papéis começaram a perder o brilho. Um corpo não encontrava mais o outro. Os pensamentos ora se deliciavam ora colidiam. Não tinha jeito de tirar aquela náusea de dentro do corpo. Estava tudo pronto para transbordar. Juntos tinham tantas outras histórias. Tantos outros cheiros, sensações, momentos. O cheiro do ralo, as baratas, os monstros: por tanto tempo calados, decidiram agora passear. Não era possível controlar a velocidade com que corpo e pensamento se moviam. Via agora tudo de fora. Seu corpo virara marionete de seus sentimentos. Não há mais ninguém no controle... os braços não se encontram... Enquanto isso suspende-se um coração e vive-se na iminência da queda...

sábado, 23 de maio de 2009

Corazón

http://www.youtube.com/watch?v=hsAVOQR4rEw

E se a estrada sumisse no sem tempo da nossa sincronia, o dia em mil partes confeitadas se desfaria...

sábado, 9 de maio de 2009

Dessa coisa de gostar...

Se é que dá para comparar a vida com algo. É. Dá. Com esse movimento sem fim. Esse que surge em noites despreparadas e vão crescendo dentro do peito. Sim, crescem como samba em dia de festa. A gente tenta, fala para parar, diz que tem limite, mas não adianta. Felicidade é assim mesmo. Chega quando quer e vai-se embora quando menos se espera. Eu continuo. Vivendo dessa montanha-russa que criei para mim. Se dizem que não há preço, contradigo. Há sim. E é altíssmo. Só eu sei quantas risadas deixei de dar, quantos sorrisos se enterraram no vaso de flor, e quantos choros calados dormiram nesse colchão. Tudo em busca daquela coisinha que nos tira do lugar. Por isso não entendo quando dizem que tem que ser tudo o contrário. A história de o formal virar material vá lá. Mas fazer isso com o amor? É porque perderam o coração de vez... Ora ou outra vou também acabar sem ele, mas por enquanto como é bom... Ouço a chuva e lembro do cheiro que fez meu caminho mudar.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Bermudas que precisavam vestir calças


Teve um tempo em que passarinhos deslizavam pelas ruas e de repente arrementiam em um vôo colorido. Eu passeava distraidamente, sem me preocupar com pequenas dores da alma. Pensei por certos momentos que o para sempre seria possível. Mas vieram dias, noites e o tempo. E, de repente, ao mudar a estação, um vento soprou tudo que existia de faz-de-conta na minha vida. Faz já uns dias, quem sabe meses ou anos... que ando por aí dispersa. Cruzo com olhares vazios que pouco me dizem. Falam tão pouco da vida. De repente em um instante armado cruzei com um par de bermudas que só podiam usar calças. E assim que mais uma vez tudo que é proibido tomou gosto de vento no rosto. Daqueles que fazem a pele corar e os olhos lacrimejarem. Meu corpo agora soluça, a voz some. Resta um desejo de felicidade. Contido. Mas com os olhos sempre verdes na esperança de que ele vista as bermudas. Entregue-se a uma outra vontade de viver daquele jeito que só duas mãos já souberam um dia.

quarta-feira, 25 de março de 2009

História de nome

Imagem: Canibalismo de Outono - Salvador Dalí

No dia que nasceu ganhou um nome. Podia ser Maria, Joana, Esquisita. Mas não. Era aquele mesmo. Aos poucos essa forma sem sentido foi se enchendo de vontade de ser. O nome aos poucos foi sendo preenchido com cores. Inicialmente muito tímidas,mal se cumprimentavam. Mas devagar começaram a se misturar. De repente dentro do mesmo nome conseguiram transformar a matéria. Como pode? Por que é que nome não tem essência? Seria tão mais fácil ser o que o nome é. Hoje as cores colidem, batem, desmaiam, perdem a cor. Ninguém prevê suas próximas aventuras. Perigo certo! Mas qual o segredo para harmonizá-las? Tem aí um pintor disposto a por ordem na casa? Não. Ela deve ser pintora do seu nome e precisa! precisa sem falta! de um nome ordenado. De um nome de cores gostosas de viver. Sem choro, nem vela. Só para ser e ponto.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Desabafo

Esse blog surgiu há quase dois anos. Depois de alguns textos que tinha guardado e finalmente achava que podiam ser publicáveis. Primeiro ele era bem tosco, sem figuras. Até que um dia, minha amiga Lola aceitou deixar ele com cara bonitinha. E ela conseguiu que ele tivesse a minha cara. Agora já cansei da cara dele. Sem desmerecer o trabalho da minha amiga. Mas esse sintoma não é só para o blog. Também cansei um pouco da minha vida, ou melhor, de mim mesma. Cansei de me meter nos mesmos rolos, repetir os mesmos erros. Cansei de inventar histórias para deixar meu dia-a-dia com cara de aventura. Cansei também da realidade que não se parece com a aventura. Parece ser hora de me reinventar. Ou melhor, quem sabe seja hora de deixar ser. Preciso mostrar para o mundo que a beleza já não me é mais essencial. E esse estado bruto, apesar de já lapidado, por muitos anos, dói um pouco. Como se novamente estivesse no vivo. Depois de ter ralado o peito no cinto da minha mãe quando descia do colo dela. Eu sei que não dá mais para inventar vidas e, às vezes, cansa colorir os caminhos. E é a roda-viva da vida. Amigos, lugares, amores. Cada dia em um canto diferente. E a gente ficando cada vez mais longe das nossas histórias. E esse blog parado sem cor!

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Equilíbrio


Hoje me contaram que ando de um jeito estranho. O desaforo foi tão grande que chegaram a acreditar que podia ser alguma doença. Meio como se eu tivesse pés de pato. Eu que nunca reparara no meu jeito de andar... agora sigo analisando minha sombra. Parece que só um pouquinho do meu pé esquerdo é que vira pra fora. E se esse é o defeito que sustenta meu edíficio? Verdade também que eu levo muitos tombos. De repente uns olhos esverdeados de pele morena me passaram mais uma rasteira. Com a perna meio torta não poderia sustentar todo o edifício sem derreter um pouquinho. Esses mesmos olhos me assustam um pouco. Às vezes parecem querer muito de mim, outras só a leveza. Não sou de resistir a encantos assim. Vivo tão absorta em meus pensamentos que parece difícil fazer curva. Mas quando as cores me cruzam... Sabe, pra quem anda torto tudo parece complicado e fácil. Num primeiro momento mudar o caminho parece só uma continuação do outro. No entanto, ao virar a curva se percebe o quanto doem os pés de quem sofre desses males. Me pergunto se um dia vou curar esse meu pé torto. Essa minha mania de carregar caixinhas de histórias do lado esquerdo. Pode ser isso que me faz entortar tanto pra um lado. E hoje fizeram o meu diagnóstico. Disseram que é um jeito diferente de balançar. E eu que nem sabia que balançava. Quem me dera poder esconder esse mar caótico lá dentro. Pode ser que esses olhos verdes do norte resolvam beijar os meus olhos verdes frios. E se eles ficarem aquecidos pode ser o começo de um lado esquerdo mais equilibrado.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Violentada



Era pequena. Sonhava com castelos encantados. Vivia um pouco aprisionada por seus medos. Algo lhe impulsionou a girar. Isso ia lhe dando forma. Não era forma de moça. Era uma dessas esquisitas. Muitos não sabiam dizer o nome. Mesmo que lhe nomeassem, a forma não se encaixaria. A forma ganhava contornos cada vez mais fortes. Via as cores do pião se desfazerem no ar. A menina se olhava no espelho e aquele girar desembestado tinha feito com que esquecesse os castelos.Agora seu corpo pairava na Terra como que em pedaços de história. Um dia descobriu que era dona dos seus pés, dos seus braços, da sua cintura e de seus pensamentos. Desenhados com muitas cores. Das tristes às felizes. Era um carnaval escondido dentro da cabeça. Não tinha dia certo pra sambar. E ninguém sabia quando ia chegar a quarta de cinzas. De repente ela chegava e ficava ali acomodada. De férias dentro daquele corpo que não era de menina. Como se lhe sugasse a vida. O segredo era que tinha aprendido a dançar.Uma dança sem nome, só dela. Podia ser acompanhada por outros corpos. Um corpo anuviado, certa vez, lhe ensinou alguns passos.Mas quando a ressaca chegava não tinha nuvem nem sol que lhe fizesse sambar. Recolhia-se dentro de seus pensamentos escandalosos e doloridos.Era a quaresma. Quaresma dura mais que carnaval. Muito mais. Mas quem fica na memória são as cores, os confetes, a serpentina. Era bom porque então teria tempo para lembrar que no carnaval braço tinha virado perna, ombro cotovelo, boca olho.E seu maior prazer era fechar os olhos e fazer as cores dançarem. Tudo tinha se encontrado num sincretismo tão violento, que era preciso parar. Agora restava uma dor. Uma dor de vida. Era a dor de querer sempre a violência da alegria.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Poema


As unhas vermelhas já estavam descoloridas. Já faz tempo que não combina mais com aquela mão magricela de dedos tortos. Gostosa, quentinha... Apesar da notícia magricela ter lhe incomodado um tanto. De ter passado o dia imaginando um dedinho encostando no outro de novo. O que iria lhe fazer dormir triste não era bem isso. Acontece que não conseguiu falar com aquela mão que fechava o portãozinho. Relembrava a mão acendendo o cigarro. Jogando a carteira fora. Abraçando os amigos. Pegando o celular no fundo do fundo do bolso. Encostando na sua pele. Mas ficara para trás. Deixara junto com a camiseta branca de bolsinho. Sua mão cheia de pudores não quis pegá-la. Mesmo depois de um sim. Como era boba! Um dia quem sabe iria crescer. E jogar as cinzas de todos os seus mortos no rio. Nem queria na represa não. Que nadassem para bem longe. Não ia mais cuidar para que não fossem parar no abismo. Se esse era o destino que procuravam, que fossem felizes. As unhas vermelhas também seriam. Elas descobriram o poema. É, nome de esmalte, mesmo, viu! Poema... poema... que coisa! As palavras só lhe serviam para inventar castelos. Não era mais hora de fantasia. A vida real queria muito que essas mãos de unhas poema lhe abrissem a porta.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Risco de vida

Les jours gigantesques - Magritte

Às vezes ainda tem vontade de se esconder embaixo da mesa. O calor de casa lhe conforta. Queria desenhar um lugar só dela. Não sabe por onde começar o traço. Vacila com o lápis em cima do papel. Rabisca um pouco. Esquece um tanto a solidão. Aprendeu demais sobre seus prórpios olhos. É tão difícil fitá-los. As lágrimas pulam sem motivo. As águas sofrem tanto para alcançar o alto do morro. Se pudesse capturar uma única imagem escolheria aquela. O pé embaixo d'água. O tanque naquele jardim de vasos. A água escorre pela perna. Num tom abaixo da vida real. Gostara daqueles dias arrastados. A dor de por anos ter pregado uma peça em si mesma lhe tirava o sono. Pendurou as lágrimas no varal. Uma a uma ... sabia que secariam. A cicatriz não iria mais doer. De repente a vida chegaria de novo. Os tombos já tinham voltado. Nem sabia mais que cor combinava com ela. Gostava tanto da janelinha distante que lhe estendia um sorriso todos os dias. Queria a alegria daquela calça comprida. As cores podiam até variar, mas sabia que o sorriso nunca lhe faltaria. Agora tinha que desenhar a vida sem tirar o lápis do papel.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Para um 2009 feliz!


2009 começou com cara de balanço...

"Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive.(...)
Liguei meu rádio de pilha. Para o Ministério da Educação. Mas que música triste! não é preciso ser triste para ser bem educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua viola. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete?"

Clarice Lispector. Por enquanto. In: A via crucis do corpo

Enquanto eu penso, ela fala por mim.