terça-feira, 23 de junho de 2009

Caminho B


De repente o ambiente sóbrio encheu-se com um olhar atrevido. As risadas seduziam sem que fosse preciso trocar uma palavra. Aos avisos recebidos levantou os ombros. Simplesmente continuou. Uma leve arrogância lhe fazia acreditar que as coisas sempre podem ser diferentes. O elevador, o táxi cheio, a farmácia. A cadeira que quis trazer para mesa. Erro. Tudo começava a falar não. Do outro lado uma história sonhada irrealizável. O banheiro, o beijo e toda irresponsabilidade do mundo. Acostumara-se tanto em viver coisas passageiras. Dessa vez parecia que o mar daquele lugar escandalosamente deslumbrante estava lhe dando um presente. Esquecera que o presente pode ser de grego. Como bomba relógio, a qualquer hora, o cavalo poderia se abrir. Como um catalizador ajudou que um lado ficasse mais próximo daquele olhar. Incendiou o que até aquele momento não passava de pensamentos. Tornou o impossível realidade. Mas não para si. Se gostava de olhares atrevidos, quem sabe o seu também fosse. E assim de rio em rio é que acabou por se afogar. Sem restar nem um amigo. Com a imagem de que depois de catalizar, seu corpo agora necrosa. A dança da vida no encontro do inesperado acaba sempre a repetir os movimentos mais conhecidos. Esquece de tentar se surpreender. Mas finalmente chegara a hora de voltar e escolher o caminho B.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Amizade

Em cada tombo, riso e choro seguram como um cordão. Em um equilíbrio desarmonioso brincam como joão bobo para que a corda esteja sempre esticada. Tão presentes, tão amáveis e tão silenciados. Protagonistas desfarçados de figurantes. Vigiam a noite e não tem pretensão de ser estrela. Sabem como ninguém ocupar o lugar sem ilusões com promessas de poder. Ouvidos afiados, línguas soltas e abraços ternos. Não seria possível suportar o mundo sem essa cadeia de olhos espalhados pelo país. Os dias de mais riso são sempre com eles. Os de mais lágrimas por eles suportados. Toda gratidão seria pequena. Existem, vivem e sentem com pouco esforço a leveza e todo peso da existência de todo santo dia.

Amor de queris



Imagem: Magic Garden - Paul Klee

ao meu amigo Vinicius.


Queri já fez 30 e não achou sua rima. Queri ama tanto que até as orquídeas nascem na janela no primeiro do ano. Queri acorda depois de desligar onze vezes o despertador. Sai de casa com o ponteiro já quebrando. Confere se a carteira está no bolso, ajeita o óculos no rosto, fecha o portão baixinho e segura minha mão. Subimos devagarzinho a rua do bairro até chegar o ponto de ônibus. Com cara de menino santo, mas espírito malandro, disfarçadamente, escorrega sua mão dentro da minha roupa. Como se estivesse dentro de quatro paredes. Dou um beliscão em queri e junto um sorriso molinho. Procuro seu rosto fresquinho para amá-lo com um beijo no rosto. A barba pinica. Um ônibus para o centro, um metrô para a Paulista. Queri continua atrasado. Lá vão os olhos perguntadores cheios de segredos. Eu que me achava tão sabida de queri, já não sei mais. Não sei mais se ri de gosto de viver ou porque se acostumou a ser assim. É o último a chegar ao trabalho, mas nada passa despercebido aos seus olhos. Se eu pudesse escolher, casava com queri. Mas eu nasci com gosto estragado. Queri não é moço de casar. Como gosto de gente sem paradeiro, de gente que ama a vida mesmo dando vontade de desistir. Nessa roda-gigante, hora sofro eu, hora sofre queri. Triste é sofrer por queri. Justo eu que faço tudo tão parecido com queri, como não consigo entender? Queri agora tem 30 e não quer saber de namoro de asa quebrada. Mas como viajar 700 quilômetros com a asa machucada? Esse amor de queris precisa de outra cor. Cor sem dor, cor de novo amor. Vê se aprende dessa vez, hein, queri?

quinta-feira, 11 de junho de 2009

204

À minha mais solitária vizinha do nome esquecido e da face embaçada pela memória, do choro abafado pelo barulho dos pratos, da voz encoberta pela sombra daqueles que não enxergam a porta da frente, das cartas engasgadas na caixa do correio, do dicionário de inglês que nada podia falar das palavras que, quem sabe, contassem sua angústia, dos vizinhos tão ensimesmados em suas mediocridades, sinto dizer que o dia amanheceu tão cinza quanto aquele em que você se foi. Apesar de as rosas estarem floridas no jardim, não há vida do lado de fora do vidro. Continuo por um impulso inicial que ainda não chegou ao fim. Às vezes quase o ciclo estaciona, mas aí bate um vento, cora meu rosto, e, faz meu corpo reverberar no movimento da vida. Confesso não compreender o sentido dessa nossa existência tão solitária e sinto como se minhas cordas vocais, veias, peito e alma se rasgassem. Ainda pior é saber que não lhe levarei nenhuma flor, não lhe dei nenhum sorriso nem lhe emprestei uma caixa de fósforos. Se seu sofrimento tiver chegado ao fim, fico aliviada e respiro melhor por alguns segundos. Como se soltassem o cinto opressor que insiste em se costurar na altura do meu pescoço. Se pudesse lhe oferecer algo, gostaria de lhe dar a sensação de um passeio a beira mar em um dia de céu azul e vento gelado. O sol no meio da paisagem aquece o corpo, nos cega para a realidade e nos faz delirar com cores jamais vistas e que certamente não existirão.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Transtorno

Pina Bausch (foto)

Mesmo que o furacão pare, que o vento cesse, que os dias passem mais devagar, que a chuva dê trégua... já ficou claro... o sol se abriu, secou o chão, abriu sorrisos para desaguar mais uma vez em tempestade... a noite não irá arder, o tempo não se fará presente e o livro ficará, por muito tempo, sem as últimas palavras.